Brasília  torna-se a capital do Brasil no primeiro ano da década de 1960. No mesmo ano,  Jânio Quadros elege-se Presidente da República, naquela que seria a última  eleição direta até o pleito de 1989 dentro do processo de redemocratização do  país.
  A década é  comumente lembrada como os anos da invenção ou criação original, da explosão da  contracultura. Valores tradicionais são contestados e a liberdade espontânea  conquista seu espaço.  O imaginário  presente move-se no terreno da utopia, configurando um caráter passadista,  mítico e idílico, quer futurista, messiânico ou apocalíptico. 
  O otimismo  povoava as expectativas reafirmadoras do slogan: “Brasil, país do futuro” .  Essa representação, no dizer de Silva (1996), toma força com o golpe militar de  1964, projetando uma ideologia ufanista e demarcando o mito do futuro. 
  Em seguida  ao furor desenvolvimentista da administração Juscelino Kubitschek,  a instabilidade política vivida nos primeiros anos desemboca no 1º de abril de  1964.  De vassoura em punho, Jânio  Quadros permanece por sete meses no governo, personificando o papel fugaz de  moralizador. “Tratava-se de modernizar, sem atentar contra os interesses  dominantes. Modernização-conservadora” (ibidem,  p. 109). Vem a renúncia, o vice-presidente João Goulart assume. A agitação  permanece, crescem as reivindicações, fortalecem-se os sindicatos,  multiplicam-se manifestações populares. As greves operárias e estudantis  assustam as elites. Militares, empresários e a própria classe média unem-se  para neutralizar a ameaça comunista. A modernidade atropela todos os  temores. 
  Com a implantação  da ditadura sob a bandeira da segurança nacional e do combate à inflação, dá-se  a mais contrastante realidade: seqüestros, assaltos a bancos, estudantes nas  ruas, luta armada e uma infinidade de ideologias materializadas em grupos de  esquerda. 
  No início  da década uma progressiva aceleração da politização da classe operária faz-se  presente. Surgem as federações que agrupam sindicatos de mesmo ramo industrial.  Em 1962 constitui-se, a despeito da legislação, a CGT (Comando Geral dos  Trabalhadores). O crescimento econômico retrai-se sensivelmente, e os níveis  inflacionários, ao contrário, elevam-se dramaticamente.
  E, em meio  a tudo, dois projetos de construção do futuro: “De um lado, a generosa, mas  dogmática, fé no amanhã previsto pela dialética hegeliana-marxista. De outro, o  liberalismo [...] convencido de que é preciso impor um padrão de  desenvolvimento antes da entrega às benfazejas leis do mercado.” (ibidem, p. 110). Gil (2001) acusa a dissolução  dos organismos institucionais que congregavam os sindicatos e o conseqüente  controle econômico e político dos trabalhadores. Os sindicatos passam a ser  fortemente tutelados pelo Ministério do Trabalho. Lideranças sindicais são  silenciadas, tornando o clima totalmente adverso para as reivindicações  operárias.
  Todo esse  cenário completa-se com o movimento estudantil de maio de 1968 e o dos hippies,  ou melhor, dos herdeiros beatniks.  Uma malha imaginária é tecida sobre a idéia de que só o futuro interessa. O  modelo militar autoritário estabelece-se pela força e por decreto e com  promessas de um amanhã magnífico. Em meio aos contrastes, o movimento hippie  marca a década com um presenteísmo desconcertante. O movimento estudantil francês, de outro modo, é apropriado  como estímulo ao vitalismo ou como ideologia de construção futura de uma  sociedade libertária. No imaginário, a “ameaça vermelha”.
  A decolagem  inicial do ufanismo é referendada pela classe média dos anos 1960. A entrada de  capital internacional financia a modernização conservadora. O “milagre  econômico” (1969-1973) garante suas bases, com inflação baixa, industrialização  e geração de empregos. Na visão de Gil (2001), o crescimento e a modernização  das empresas, no período, valorizam a planificação, a tecnologia e a  especialização profissional.
  Contudo, o  projeto é recessivo, exclui o operariado e traz como conseqüência a elevação  fulminante da dívida externa brasileira. O choque do petróleo, o retorno da  inflação, a escassez de mão-de-obra observada nos grandes centros industriais e  o retorno da manifestação do movimento operário são sinais de que nem tudo ia  bem. Mais tarde, os intelectuais viriam a denunciar o uso do esporte como  veículo de alienação. 
  A esquerda acabou por  confundir a instrumentalização circunstancial com a condição inerente.  Passou-se a crer que o futebol era intrinsecamente alienante.[...] A festa era,  por um lado, o oposto do cotidiano, do trabalho, e servia à conservação da  ordem. Por outro lado, ela se opunha à conscientização, sublimando as energias  revolucionárias e, de novo, favorecia o conformismo. (SILVA, 1996, p. 112). 
  Como “anos rebeldes”, os anos 1960  configuram sonhos, utopias, lutas e práticas não-conformistas. “Década em que  os hippies, situados na fronteira entre a utopia holista moderna e o  descompromisso pós-moderno, conviveram com os guerrilheiros urbanos e os  revolucionários marxistas. Tempos da ditadura militar” (ibidem, p. 231).
  Quem lá está, acordado e lúcido, prevê  o que viria nos próximos anos pintados com outras tintas. Promete-se o “céu” e  muitas coisas mais. A família como unidade referencial já era. O negócio é botar pra  quebrar. Fazem-se igualmente política e festival. 
  A chegada da “pílula” em 1960 provoca  um corte no tempo e demarca uma transformação no comportamento. A herança beatnik de desafio ao sistema, as  imagens de rebeldia, a alienação, a estética chocante (cabelos, roupas exóticas etc.) personificam uma idéia de  que o mundo é um lugar extraordinário para se viver, para além do espaço  doméstico e do ideal burguês que era a família. Bagunçar o coreto é a palavra de ordem nesse imenso parque de  diversões, com o sexo livre incluso, mas ainda com discrição, sem levantar bandeira. O lema é ser moderno, curtir e ter prazer. Caretas por dentro, ainda que inseridos no contexto por fora. 
  O Brasil do começo dos  anos 60 vivia um dos poucos momentos da nossa história em que pudemos ver o que  chamávamos de “forças progressistas” chegarem muito próximas do poder político.  Havia uma “arte revolucionária” sendo desenvolvida [...] colocando na ordem do  dia a construção de uma cultura ‘nacional’, popular e democrática a serviço da  revolução social que acreditávamos estar próxima (DIAS, 2003, p. 27).
  Em 1968/69, com o AI-5, Costa e Silva  dá início ao que viriam a ser os “anos de chumbo”, os anos silenciosos.
2.1.2.2 Anos de chumbo: enquanto  corria a barca dos anos 1970
  “O sonho  acabou” .  Durante os anos 1970 o Brasil vive o paradoxo: (1) o apogeu do orgulho  patriótico alimentado pela ditadura militar, prevalecendo os ideais de  modernização e (2) a vergonha da ausência de democracia. A exploração da utopia  futurista consagra o slogan “O Brasil  é o país do futuro” como uma ideologia. 
  Os  artifícios e os mecanismos de obscurecimento manipulam  o real. A visão de intelectuais é a de que se  aproveita a euforia do tricampeonato na copa de 1970 para encobrir atrocidades,  tortura e caça aos intelectuais de esquerda, militantes comunistas e  guerrilheiros urbanos. 
  É o tempo  de mobilização para se cantar “pra frente Brasil, salve a seleção”e “noventa milhões em ação...”. A catarse, a glória e a unidade  nacional ressoam nos quatro cantos do país, consolidando imagens e  representações que servem aos interesses das elites. Coroam-se as promessas  feitas na década anterior sob a glória verde-amarela. O futebol catalisa a  convergência, funcionando como elo afetivo e tranqüilizador.
  Boa parte  da população confirma a utopia futurista, por razões que variam do  convencimento genuíno ao completo desconhecimento. 
  O Brasil, ainda que a  plena sacralização do futurismo tenha ocorrido no início da década de 1970,  atravessou a ditadura e o caos sem vacilar quanto a uma convicção gestada nos  dias de liberdade. A exacerbação, pelos militares, do mito, ou a transformação  do mito em ideologia, coincidiu com o sentimento popular. 
  Os militares buscaram  no futurismo o coração do povo, única forma de obscurecer, por tempo  determinado, o horror ditatorial (SILVA,  1996, p. 22).
  Naqueles “anos de chumbo” não há  lugar para propostas radicais e libertárias nos costumes, que dessem relevância  ao aqui e agora. O exílio no fim dos 1960 e começo dos 1970 silencia a crítica  à família como instituição, enquanto o regime investe na indústria cultural.
  A comunicação  da ditadura trabalha firmemente imagens como “Brasil, ame-o ou deixe-o”, “Este  é um país que vai pra frente” etc. Invade a indústria cultural uma linguagem coloquial,  voltada para os dramas da classe média. Palavras tais como desbundar e piração são  incorporadas ao vocabulário cotidiano, sugerindo que o discurso se fazia  acompanhar de fatos e atitudes. Por um lado, representações do cotidiano a  serviço da criação de novos modelos, de uma fachada de Brasil que se moderniza,  por outro, representações que são entendidas como desafio à ordem estabelecida.  Nesse sentido, a cultura de massa tornou-se ela mesma, a razão do processo de  modernização. A indústria cultural é, portanto, sustentada pela ideologia do  poder autoritário instituído e possui características próprias, comuns aos  países capitalistas, de desenvolvimento tecnológico.
  A contracultura abria  fogo contra a espécie de morte em vida produzida por uma sociedade onde impera  o totalitarismo tecnocrático. Sistemas com uma integração organizacional  perfeita e um exército de ‘especialistas técnicos’ para explicar como deve  funcionar a vida, da política à educação, do lazer à cultura como um todo, onde  até os impulsos inconscientes e até mesmo o protesto contra a tecnocracia –  tudo se torna objeto de exame e de manipulação puramente técnicos (ibidem, p. 75).
  Entretanto,  conforme Dias (2003), uma espécie de fossa generalizada  se estabelece, e a faixa dos que correm à margem alarga-se. 
  O discurso já não era  mais ideológico como nos anos 60, e romper com a célula-mater da sociedade  autoritária também deixava de ser um slogan a que se aderia através de grupos, partidos ou movimentos de massa. ‘Cada  um na sua’ [...].Tínhamos razões de sobra para ser do contra. O alvo óbvio não era  a ditadura e, sim, a classe média que lhe servia de base, solidamente incrustada  em seu conformismo, necessidade de segurança e moralismo, feliz e contente com  seus eletrodomésticos, apostando agora todas suas fichas no milagre do Delfim,  entregue a um consumismo voraz, carro zero, TV em cores, casa na praia, ações  na bolsa... (DIAS, 2003, p. 55-70).
  A mesma autora configura a juventude  dos anos 1970 como perdida entre uma infância permissiva vivida nos anos 1960  de muitas promessas e a idade adulta “odiosamente” conformista imposta pelos  “anos de chumbo”.  “No lugar do coletivo  entrou o individual na assim chamada ‘década do eu’, e a vida cotidiana foi o  foco privilegiado da arte e da cultura” (ibidem, p. 86). A grande missão é ser capaz de transformar a própria vida.
  Pellegrini (1996) fala de um ‘vazio  cultural’ experimentado no início dos anos 1980, em que se busca dissipar a  névoa cinza que paira sobre a década anterior. Aquele último decênio  apresentava-se enigmático e incompreensível em suas contradições, por parecer  envolvido na densa bruma do contexto histórico e político que o marcara.
  [...] os anos 1970, na  verdade, iniciaram-se com o AI-5, em 1968, e terminaram com a anistia e a  ‘abertura’, em 1979, caracterizando-se, assim, como um período francamente  marcado pela militarização do Estado e por todas as conseqüências resultantes  desse fato para a vida econômica, política, social e cultural do país (ibidem, p. 5).
  Convive-se com imagens bastante  diversas: “Na psicodelia dos anos loucos, a ambigüidade sexual e vastas  cabeleiras confundiam os papéis, indicando o declínio do macho” (ibidem, p. 89). 
  O movimento dos hippies pacifistas -  tipos muito estranhos cheios de símbolos e flores - e o imaginário psicodélico  – drogas, viagens astrais, óvnis, a Era de Aquário - confundem-se em si e com o  imaginário político, da luta armada e do totalitarismo, que aparentemente  corresponde a outro universo. As imagens associadas ao movimento hippie toma contornos  inusitados: “paz, amor e flor” são os equivalentes de subversão, proxenitismo e  drogas, construindo representações e forjando um imaginário social em que se  estabelecem antagonismos.
  Revolução social versus revolução comportamental.  Caminhos que se excluíam – quem fosse de esquerda não deveria usar drogas, uma  coisa de alienado; enquanto para o hippie, política era um jogo sujo e desprezível,  e a grande missão era transformar a própria vida (ibidem, p.  102).
  Dias (2003, p. 160-161) resgata o que  julga serem as alternativas possíveis em meio ao contexto vivido: 
  Deixar rolar ou deixar  sangrar? Para quem ficou no país, disposto a botar pra quebrar, só existiam duas possibilidades: curtir o barato da descoberta de si mesmo e fazer  sua revolução comportamental, sem script prévio; ou roer o próprio fígado e não ver outra saída senão virar guerrilheiro, entrando de sola na contra-revolução  armada, com previsível script final.
  Os desbundados só acreditavam no processo  individual como saída, na busca do revolucionar-se; já os guerrilheiros  reprimiam os sentimentos pessoais, seguindo um rígido manual de conduta que  desvalorizava as questões individuais em prol do coletivo e de uma revolução  social que viria. E o orgasmo ficava para depois da revolução. 
  Os que optam por uma posição  intermediária, conforme Dias (2003) supõe, fazem-no geralmente pela integração  ou subordinação ao modelo autoritário instituído, visto que formas de  resistência só há duas.
  Em depoimento a Dias (2003, p. 164),  Fernando Gabeira descreve uma representação que dá uma dimensão épica à  militância armada:
  O sonho de muitos de  nós era o de passar logo para um grupo armado. Em nossa mitologia particular,  conferíamos aos que faziam este trabalho todas as qualidades do mundo. [...]  Dizíamos, é claro,  que todo trabalho era  importante, mesmo o mais humilde. Mas isso não bastava. Os jornais estimulavam  nossas fantasias. Eram descrições mirabolantes: jovens com nervos de aço (ainda  saíamos nas páginas de polícia); louras que tiravam uma metralhadora de suas  capas coloridas. Claro, você ri. [...] Mas a fantasia trilha caminhos que não  se controlam [...] Imagine [...] você fazendo um assalto com nervos de aço,  dormindo com a loura que interceptou  o  carro da radiopatrulha com uma rajada de metralhadora, depositando o seu  revólver Taurus na mesinha de cabeceira e dizer: ‘Dorme em paz, meu bem, que  dentro em breve o Brasil será socialista’. 
  Entretanto, também nessa década o  capitalismo entra em recessão, com baixas taxas de crescimento e altas taxas  inflacionárias. No Brasil, a crise do petróleo desfaz a magia, e a classe média  vê-se diante de uma realidade diversa da decantada prosperidade e das promessas  dos primeiros anos da década de 1970. “A coisa começa a ficar preta, e a  expressão ‘crise econômica’ entrou no cotidiano do país como sintoma principal  de uma doença crônica que se instalava no coração do combalido corpo nacional:  a inflação” (ibidem, p. 185).
  Para Silva (1996, p. 113) 
  as eleições legislativas  de 1974 foram o meio que os militares encontraram para simular a democracia [...].  Surpresa. O Movimento Democrático Brasileiro (MDB – único partido de oposição  permitido) massacrou a Aliança Renovadora Nacional (Arena), representação  oficial. O ‘milagre econômico’ começava a afundar em 1973. Diante da crise  econômica, da recessão, do desemprego e da miséria, nenhuma paixão esportiva  conseguiria aplacar a insatisfação. 
  Na visão de Dias (2003, p. 189), “o  clima já era outro, inclusive para o pessoal do desbunde. Com o vento batendo a favor da abertura deu-se também o  esvaziamento das margens contraculturais”. Ainda assim persistem alguns de seus  elementos, como por exemplo as drogas e a vida em comunidades alternativas, mas  sem um projeto social articulado. As pessoas já se drogam individualmente e  começam um caminho para dentro de si mesmas.
  Em 1979 o país experimenta a  decadência do regime militar e de seu projeto de “modernização conservadora”.  As utopias marxistas já vivem sob suspeição. O povo mantém-se amalgamado ao seu  imaginário, ao presente de afetos, festas e relações. É então, conforme  expressa Dias (2003, p. 191), “que um fato inimaginável começou a tomar forma  no campo político brasileiro: a união de forças do governo e da sociedade civil  para enfrentar o poder dos porões”. E a juventude do anos 70 que entra na barca  nesse momento, já é outra. Afiança Gil (2001) que a progressiva democratização  e as ações reivindicatórias dos trabalhadores começam a se revelar novamente  mais visíveis. As lideranças operárias voltam à cena na negociação dos assuntos  trabalhistas.  
  A luta agora já não mais se configura  como um embate entre capitalistas e socialistas. Trata-se de um embate entre  aqueles que detêm o poder e os que não o detêm. Quem chega com 20 anos no final  dos anos 1970 pega o bonde andando.  “A viagem de autoconhecimento já tinha saído de moda, e os tempos pediam drogas  mais speeds, como a cocaína” (ibidem, p. 341). A década encerra-se,  deixando para trás a radicalização na “liberação das emoções”, bandeira dos  libertários. 
  Os anos 1970  que haviam amanhecido hippies, floridos e  ingênuos, anoitecem punks, agressivos  e cinzentos - uma redefinição de mundo, uma representação que se materializa:
  [...] mundo que, desde  então, passou a ser dividido em termos de regimes totalitários e regimes  livres, assim entendido pela direita e, com alguma dificuldade, aceito pela  esquerda; com as crises que iam da inflação ao desemprego; da crise monetária à  crise de energia; com a erosão da credibilidade de personalidades públicas e  instituições intocadas; com a constatação de que corrupção e escândalo não eram  privilégio de ditaduras latino-americanas [...] (ibidem, p.  343).
  Maria  Paula Nascimento Araújo   (apud DIAS, 2003, p. 347) assim sintetiza aqueles anos:
  Toda geração tem uma  marca específica. Melhor dizendo, toda geração que tenha tido algum tipo de  envolvimento político tem a marca dessa participação; algo como um distintivo  que faz com que as pessoas que partilham dessa experiência se reconheçam [...]  a marca da geração dos anos 1970 parece ter sido a desconfiança em relação a  todo tipo de hierarquia; convenções e padrões institucionalizados de vida (no  que diz respeito a formas de atuação política, modelos familiares e processos  de profissionalização); a resistência ao discurso da competência (identificado  com o poder instituído); e, principalmente, uma atenção para a questão da  diferença, do indivíduo e da subjetividade. 
2.1.2.3  Década maldita: o fim das utopias nos anos  1980
  Arrolados  como a década maldita, os anos 1980 carregam o peso da privatização do  político, do desencanto utópico, do fim das ideologias,  dos sonhos e da história. Reconhece-se nesses  anos o início do fim do século XX. A década, por alguns denominada “perdida”, é  marcada por forte recessão econômica, inflação, elevação dos níveis de  desemprego, redução proporcional dos salários e, pela intensificação da  automação através da multiplicação do número de demissões. (GIL, 2001, p. 56).
  A década coincide  com o momento de redemocratização do país, traduzido na transição política  entre a ditadura militar e a primeira eleição direta para a representação  máxima da nação. Entretanto, no seu final, convive-se com um Brasil marcado  pelas juras de “caça obstinada aos marajás” e com o resgate de promessas num  governo com marcas populistas. 
  Os últimos  anos da década abrem uma perspectiva após o silêncio: a juventude da época é  empurrada em direção à reconstrução de uma outra visão de mundo e à escolha de  artefatos para expressá-la.
  Gil (2001)  relata que se observa, nas organizações, o surgimento das novas tecnologias  gerenciais voltadas para a redução de custos com pessoal, processos e outras  despesas de gestão. Popularizam-se na década conceitos como descentralização, downsizing, reestruturação, reengenharia, empowerment, gestão japonesa etc.
  O momento é  pois caracterizado como sendo da Geração X, jovens adultos e adolescentes que  se iniciam na aventura da descoberta de um espaço mais amplo que se estenda  para  além do familiar, de um espaço  político e social a ser conquistado. Há necessidade de se construir novas  imagens e novos significados para o privado e o público: em certa medida, uma  expectativa de retomada.
  Vargas  (1999) salienta que a análise da década merece, entretanto, um cuidado maior,  sobretudo no tocante aos sujeitos implicados com esse momento histórico  específico. Na visão do autor, é temerário e injusto afirmar que a juventude  dos anos oitenta se configura como implicitamente apática, passiva, alienada e  incapaz de criticar consistentemente. Ele toma uma direção que desemboca no  comparativo entre os paradigmas utópico e pós-utópico, dando relevo a rupturas  que configuram essa passagem.
  Silva  (1991)  recorrendo-se a Maffesoli explicita que os anos 1980 se configuram como marco  representativo da transição para a pós-modernidade, “o que implica a morte de  três utopias seculares: a aposta no futuro, a fé na ideologia do trabalho e o  apego ao prometeísmo, símbolo da produção moderna”. Decorre então que, ao se  pensar nas novas modalidades de convivência e interpretações de mundo, não se  pode prescindir de uma compreensão do que se convencionou chamar de paradigma  pós-utópico.
  Portanto, 
  a afirmação simplista  de que, no que se refere especificamente ao Brasil, a geração que nasceu e se  formou sob a ditadura militar desaprendeu a capacidade de criticar o sistema  dominante e optou por um escapismo hedonista, conformista e alienado deve ceder  lugar a uma análise ampliada do fenômeno da pós-modernidade e de suas  implicações para a reorganização da esfera sócio-política. 
  A idéia de que a  superação do ideal pós-utópico tem como contrapartida obrigatória o conformismo  e acriticismo merece ser melhor avaliada.(VARGAS, 1999, p. 186).
  Como faz  Vargas (1999) com base na etimologia da palavra utopia – do grego u-topos, o “não lugar” - , é possível  verificar que o pensamento utópico remete a um tempo imaginário de uma era de  ouro ou a um futuro livre dos males, mas nunca ao aqui e agora. É, portanto, um embate entre presente e futuro,  conforme visto quando se discutiu o conceito de imaginário, entendido nesse  caso como o paradigma utópico e pós-utópico, ou, melhor ainda, um embate entre  as representações predominantes nesses dois lugares.
  Vargas  (1999) destaca em seu texto alguns elementos contestatórios do que chama uma  análise simplista dos anos 1980. Atenta para o fato, por exemplo, de que até  aquele momento o pensamento utópico privilegiava o futuro, um depois, sempre esperado, além de  considerar forçoso afirmar que a crise de ideologias e das energias utópicas  constitui fenômeno internacional e não somente circunscrito no contexto  sócio-histórico brasileiro. 
  A  pós-utopia configuraria o momento da presentidade ou agoridade, lançando por terra  a crença na linearidade da história, a ilusão do conhecimento histórico  objetivo, a noção de que o jogo político constitui a melhor forma de construção  etc. Com base em autores balizados, Vargas (1999) localiza a origem dessa  transformação nos movimentos da juventude urbana européia e americana, dos anos  1960, que erigiram o espontaneísmo como forma de contestação, exigindo a liberação hedonista do corpo, e  entronizaram a revolução no quotidiano dos comuns.
  O autor  continua, discutindo que o paradigma pós-utópico, além de alterar a percepção e  representação do tempo, reavalia a noção dos espaços (público e privado) e o  valor a eles atribuído. O espaço público encerraria o lugar da utopia, o desejo  de construção de um lugar ocupado de forma igualitária.
  Assim, o ideal  democrático cede espaço a um ideal comunitário renovado nas últimas décadas,  decorrente em grande parte da reedição de antigos valores. Suas marcas seriam o  cotidiano, o localismo, o presente, o passional e o imaginário. 
  O sentimento coletivo  é revitalizado, agora de uma forma familiarizada, mediante a exaltação de um  tempo presente e de um espaço privado, o do doméstico, do cotidiano  experienciado, das ações sem qualidade, das relações de vizinhança, das  afinidades das turmas e tribos de bairro. Essa restrição temporal e espacial  das ações individuais não representaria, contudo, um mergulho cego no  individualismo acrítico, passivo e desinteressado (ibidem, p.  190).
  A inexistência do objetivo comum,  associada ao vínculo hedonista e tribal, atualiza para Vargas (1999), uma  solidariedade de outro tipo, interiorizada, familiar, relacional e orgânica,  marcada pelo sentimentalismo. O fim das energias utópicas toma lugar, então, na  afirmação do tempo presente e do espaço privado, em substituição à projeção  futurista e messiânica.
  Outro aspecto importante no tocante  ao imaginário relativo aos anos 1980 diz respeito ao que Marra (1999) chama de  virada neoliberal na América Latina, situada entre os anos 88/90. A marca: ascensão  concomitante de governantes (Salinas/México, Collor/Brasil, Menem/Argentina,  Perez/Venezuela e Fujimori/Peru) que têm em comum o fato de não terem  confessado em campanha o que efetivamente fariam depois de eleitos, implementando  exatamente o oposto do que propalaram. 
  Lançando mão das idéias de Werneck Sodré,  a autora (ibidem, p. 120) referenda  que, no Brasil em particular, a vitória neoliberal se deve “ao sucateamento das  universidades públicas, à alienação de extensas áreas culturais e, acima de  tudo, à grande ofensiva da mídia, intensamente mobilizada para a cruzada contra  o que possuímos de nacional”. E continua, refletindo que conceitos como nação,  pátria, Estado, soberania etc. são depreciados, o que além dos fracassos  sucessivos de planos econômicos, da descrença no Estado e da desmoralização  crescente da política e dos políticos, acerta em cheio a auto-estima do que é  nacional. O mito do mercado toma força em detrimento do Estado, exigindo uma  revisão constitucional antes mesmo que leis complementares sejam elaboradas, a  fim de ajustá-la ao pensamento neoliberal. 
  É nos anos 1980, então, que o Brasil se  reencontra com a democracia formal e entrega-se ao presente. O futuro utópico  perde a aura de magia e fascínio. Para Silva (1996, p. 149), para que se  compreenda a geração dos “caras pintadas” ,
  é preciso evitar-se o  erro da contraposição alienação/não-alienação. Afirmar que os jovens  brasileiros apresentaram a prova de sua conscientização. [...] Em vez da  refutação do diagnóstico do desacatamento, da despolitização e da passividade,  a juventude ativou outra dinâmica de prática social. A não-alienação consiste,  na vertente hegeliano-marxista, na expressão de uma identidade, de uma essência  em movimento, de um compromisso em processo de finalização. 
  Entretanto, a visão de Silva (1996,  p. 150) é a de que, contra todos os argumentos, a não sistematização de uma  atuação política toma forma, na qual o fragmentário e a cultura do sentimento  pesam: “os jovens estiveram nas avenidas, pressionaram as autoridades, jogaram  no espaço público, embaralharam as cartas e, como vieram, partiram:  espontâneos, coloridos, ecléticos e descomprometidos”.  E conclui:
  A passagem do  futurismo ao presenteísmo não significa a fundação do paraíso pela desistência  de procurá-lo em um tempo vindouro. Desumano, o Brasil da miséria produz um  imaginário espetacular, de criação e maleabilidade, que o mundo pós-industrial  desconhece. A verdadeira utopia seria a construção de um Brasil justo e  orgulhoso de seu estilo barroco (ibidem,  p. 153). 
  Nos grandes  centros urbanos assiste-se ao surgimento de espaços de jovens, de tribos e de  boêmios que se ligam pelo quotidiano e pelo comum, sem elos e com esperanças no  amanhã. A geografia compõe-se pela ocupação de espaços reais e de importância  simbólica, na ausência de projetos monolíticos. Presentes estão os ideais  efêmeros, os laços frouxos, importando mais a afetividade implícita do que a  permanência, a lealdade e o compromisso em longo prazo, a busca de prazer  intenso no possível e a adoção da trivialidade como elemento de aproximação.
  O imaginário  social é uma das respostas postuladas pela coletividade aos seus próprios  problemas. Sendo assim, é bom que se recorra a Silva (1996, p. 11) para  compreender que 
  os brasileiros não são  atores interpretando papéis previstos em roteiros concebidos de antemão.  Tampouco produzem a história cotidiana em completa dependência de um imaginário.  A mão-dupla entre o pensado, sonhado, idealizado, introjetado como valor mítico  ou fundado e o realizado abre ao pesquisador o coração do social. 
  Nessa vertente de entendimento, o  autor analisa que a idéia expressa em “O Brasil é o país do futuro”, se esgotara.  A crença no futuro redentor, orgulho de uma população policultural, perdera a  capacidade de unificar, seduzir e iludir. Antes se confundiam futurismo, mito,  fabulário, ideologia, projeções e sonhos, fazendo desabar sobre o país o  realismo e empurrando os brasileiros para a construção de seu presente. “Em  resumo; existiu no Brasil até cerca de 1985 um mito, um sonho, uma fantasia e  mesmo uma certeza: o futuro faria do Brasil a locomotiva do mundo” (ibidem, p. 14).
  Vargas (1999, p. 192) deixa, enfim, a  descrição de uma imagem que supostamente representaria a geração dos anos 1980,  utilizando-se da expressão “anjos decaídos” para simbolizar um grupo social que  compartilha grau etário semelhante e que, tendo perdido a fé no paraíso utópico,  finca pé num presente contraditório, injusto e violento, “um presente saturado  de apelos consumistas, de signos de rotação e de revoluções por minuto;  presente, no entanto, que é também o tempo da festa, do jogo estético e  exibicionista, das grandes efervescências [...] da fruição permanente do aqui e  agora em um espaço crescentemente privatizado”.
Termo criado por Timothy Leary por volta de 1960, com o significado de expansão da consciência. Originalmente era usado em referência às drogas alucinógenas e depois passou a traduzir todas as sensações, em especial visões coloridas, experimentadas pelas pessoas sob o efeito das drogas (DIAS, 2003, p. 142).
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![]() 1647 - Investigaciones socioambientales, educativas y humanísticas para el medio rural Por: Miguel Ángel Sámano Rentería y Ramón Rivera Espinosa. (Coordinadores)  Este  libro  es  producto del  trabajo desarrollado por un grupo interdisciplinario de investigadores integrantes del Instituto de Investigaciones Socioambientales, Educativas y Humanísticas para el Medio Rural (IISEHMER).  Libro gratis  | 
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